Palestra brilhante, emocionante e essencial, proferida por Majorie March no Seminário Psicologia e Diversidade Sexual: Desafios para uma sociedade de direitos
"Atualmente, estou presidente da Associação de Travestis e Transexuais
do Estado do Rio de Janeiro,
vice-presidente da Articulação Nacional de Travestis e Transexuais e
vice-presidente do Conselho Estadual LGBT do Rio de Janeiro.
Eu acho que é muito importante falar de travestilidade num
espaço como esse. É muito importante porque em alguns momentos nós escutamos
muito falar de homofobia, homofobia, homofobia, homofobia, e a mim, como
representante desses segmentos ainda tão sem voz, ainda me incomoda um pouco
estar nesse pacote tão grande. Por que me incomoda um pouco estar nesse pacote
tão grande?
Inicialmente, porque eu agradeço todo convite para eventos
de diversidade sexual, apesar de toda tristeza de estar incluído, porque, como
travesti e representante de travestis e transexuais, nós não somos uma questão
de discussão de diversidade sexual.
Nós somos uma questão que deveria ser tratada de diversidade
de identidades. Eu sou, às vezes, muito criticada porque prego o movimento à
desassociação da travestilidade, da transexualidade, da homossexualidade. São
fatores diferenciados, com origens diferenciadas, com implicações sociais
diferenciadas e que precisam de tratamento e entendimento diferenciados. Não se
trata de privilégios ou preconceitos, mas sim da legitimidade do assunto que
estamos tratando. Eu acredito que o painel do que nós ouvimos um pouco falar de
homofobia é muito triste, mas se
projetarmos a homofobia como foi dita na escola, nos meios sociais, para os
travestis transexuais, é uma situação confortável. Queria eu que as travestis
pudessem sofrer homofobia no trabalho. Não, elas não estão empregadas. Queria
que elas pudessem ser vítimas de bullying, mas, não, elas não podem estudar.
Então, a questão da “transfobia” se remete a outro tipo de
preconceito, outro tipo de fundamento, não a rejeição sexual, a prática sexual,
mas, sim, a rejeição a novas identidades, ao que nós estamos tratando como tema da família, a rejeição à redefinição e à
rediscussão do que é gênero.
Digo que o primeiro preconceito em que as travestis ou os
meninos, quando dão indícios de travestilidade ou transexualidade, são vítimas,
é a misoginia. Algumas pessoas acham que misoginia é aversão à mulher.
Eu acredito que
misoginia é aversão ao gênero feminino, haja vista que todos os homossexuais,
quando são crianças e são reprimidos... qual é a primeira ofensa e repressão
que nós sofremos? “Pare de chorar. Você está igual a uma mulherzinha”. Isso
deixa bem claro onde está a origem do preconceito. Antes do meu preconceito por
ser travesti ou da minha identidade com a possível homossexualidade – na
infância nós ainda não detectamos bem – eu sou vítima de misoginia, eu sou a
personificação do desprezo com que a mulher é vista em sociedade. Eu não falo
isso com felicidade; é com muita tristeza, porque sou enxergada como homem, a
classe dominante, vencedora.
O meu pior preconceito por ser travesti é “Você renunciou a
ser homem para se tornar uma mulher? Para viver como uma mulher?” E o mais triste
ainda é, às vezes, a gente ver que a mulher retribui esse preconceito contra as
travestis que é fundamentado no ódio a sua própria figura. A mulher despreza
“Não é mulher de verdade”, e a discussão não é essa.
Na campanha do 29 de janeiro do ano passado, nós tivemos
dois tipos de materiais e foram quatro dias para pensar em um slogan para a
campanha. Ao final de muita discussão, muito quebra-pau – como é peculiar nas
nossas reuniões de diretoria para se chegar a um veredicto –, o que venceu,
adequado de várias formas, acho que foi muito legal e foi muito bom de ver sua
aceitação. O tema era “Mulher de verdade respeita os travestis”. Eram dois
materiais diferentes. O do homem era “Respeitar os travestis e transexuais não
te faz menos homem. Te faz mais humano”. Na da mulher vinha em cima a frase “A
união entre mulheres e travestis findará com todo machismo e opressão ao gênero
feminino”.
Entendo que a primeira consciência que mulheres
heterossexuais ou mulheres adequadas biologicamente, travestis, transexuais têm
de ter é um entendimento do respeito ao feminino, do respeito ao gênero, para aí,
a partir daí, nós pensarmos em discutir machismo. Enquanto não apararmos as
arestas do nosso gênero, da nossa fragilidade, eu acho que vai ficar muito
difícil nós conseguirmos implementar uma discussão real contra o machismo,
contra a opressão, contra a desvalorização do gênero feminino.
A questão da travestilidade também é muito importante ser
discutida nesse espaço, porque uma das minhas grandes preocupações é –quando os
serviços de psicólogos são acessados por pais e mães ainda em conflito,
buscando orientação – com uma orientação errônea que pode ter consequências
catastróficas, como as que a associação vem acompanhando há alguns anos.
Eu me lembro que a minha travestilidade começou muito cedo.
Aos doze anos eu já era um travesti completo, com modificações corporais, vindo
de uma família inter-racial, intercultural e intersocial, porque era tudo
dividido 50%, era muita cultura e muito recurso para uma parte, nenhum recurso
e nenhuma cultura para a outra. Isso somado a todos os agravantes que uma
relação inter-racial causa no Brasil, que nós fingimos que não, mas não é
comum, não é normal. As pessoas não enxergam dessa forma. Isso foi muito
complicado porque gerou um racha na minha família. A tática de uma parte foi
procurar uma explicação clínica, uma explicação patológica para aquele fenômeno
familiar, a outra me rejeitou por se tratar de uma “sem-vergonhice” social.
O que me preocupa hoje, avaliando que a busca por auxílio
profissional não foi das melhores e que se eu não tivesse tido, entre tantas
das sortes que eu graças a Deus tive na vida, o pai que eu tive, isso teria
tido consequências bem piores, que impossibilitariam hoje de eu estar aqui, de
eu ter tido a vida profissional que eu tive e que tenho, de poder ocupar os
espaços e ser uma agente multiplicadora de oportunidades para os meus
segmentos, porque é muito difícil a população brasileira se sentir representada
por sujeitos que realmente vivenciam aquela realidade.
Geralmente, é alguém que acumulou saber, que teve essa
oportunidade, que se aproxima dessa causa e dela vira o grande parceiro, e são
muito poucas as populações que sofreram, que vieram lá de baixo e que tem na sua
representatividade todo o acúmulo vivencial junto com o acúmulo técnico e teórico.
E hoje as travestis no estado do Rio de Janeiro, nós conseguimos chegar a esse
nível de excelência. Nós deixamos de ser objeto de estudo e passamos a ser
sujeitos. “Não, nós não estamos numa sala para que a universidade venha nos
estudar e publicar como vivemos, como comemos”. Não. Nós queremos, sim, com a
universidade, uma parceria em que o saber acadêmico, casado com o saber
vivencial, possa produzir ou ajudar a produzir subsídios que gerem qualidade de
vida para as pessoas.
Vejo no William Peres uma grande e qualificada atuação de um
personagem acadêmico – no respeito, na responsabilidade da produção acadêmica
feita com as travestis transexuais. E eu quero mais exemplos, eu quero mais
Williams Peres saindo. Eu brinco lá no Rio e falo que tem muita gente ganhando
título de doutor com lixo acadêmico. Travestilidade e transexualidade são temas
ainda muito pouco explorados, em que até a banca examinadora tem pouquíssima
experiência do que sejam. Então, se você começar a falar muito e usar alguns
termos “eu vou te dar nota 10 porque eu acho tão fantástico, nossa você
conseguiu chegar perto deles e não foi mordido? Então, merece 10. Sei que você está
falando e eu não entendo nada”. E aí quando eu vou a alguns lugares em que
tenho a possibilidade de estar em algumas aulas inaugurais do curso de
Psicologia, oportunidade como o professor Pedro Paulo já me deu, assim como algumas universidades, as pessoas
estão armadas e me descrevem “Olha, você e isso e aquilo, você age assim”, e
você leva aquele choque. “É sim. Olha quem foi que disse, ele é renomado”. E aí
aqueles estudos de alguns meses, de alguns anos, se sobrepõem aos meus 35 anos
de vida. Não é assim.
Então, o que nós procuramos é a qualificação, é a parceria,
porque eu acredito que ninguém vai modificar o mundo sozinho. Nós precisamos de
várias frentes, só que para isso necessitamos: primeiro, da compreensão do
movimento, da necessidade, do apoio acadêmico para legitimação dos seus dados,
para computar seus dados, para centralizá-los; mas nós precisamos também da
humildade acadêmica de respeitar o saber vivencial. Nenhum estudo de mestrado,
doutorado que exista vai se sobrepor aos meus 30 de vivência, 24 horas por dia.
Por mais que se tenha estudado um grupo grande de travestis durante todas as
teses, não dá para se comparar com o
grupo de travestis com que eu convivi durante toda a minha vida. Então, eu acho
que só a junção desses dois saberes nos possibilitará formar bons profissionais
que consigam dar orientações com vistas à qualidade daquela família. Porque o
que me preocupa aqui no Brasil, por exemplo, quando nós falamos de menor de idade,
é o que as pessoas têm de entendimento de proteção ao menor.
Nós vamos falar de identidade, de respeito à identidade do
menor de idade que tem a sua identidade, tem o seu gênero constituído, sim. As pessoas
ainda hoje, quando eu falo do porquê da dissociação com a homossexualidade
dizem: “Ninguém resolve com quem vai fazer sexo menor de idade”. E eu retruco: “Gente,
eu, como travesti, posso ir até assexuado; eu não estou falando de com quem eu
vou fazer sexo, eu estou falando de como a pessoa se identifica com o mundo”.
Eu agora estou estudando, até para poder falar, porque
algumas pessoas têm me pedido sobre isso, sobre a transição da operação de
readequação genital com menores de idade que está acontecendo em alguns países.
Ainda não tenho opinião formada porque acho que nós
precisamos primeiro entender e depois transportar isso para a realidade
brasileira. E o que inicialmente, assim muito por cima, me pareceu um pouco
simples, eu sinto necessidade de estudar mais, porque achei um pouco simples demais
e muito incoerente. Se eu diagnostico em você um pertencimento à identidade
contrária ao seu sexo biológico e entendo que a solução para esse entrave é a
cirurgia, para que vou esperar você chegar aos 18, 20 anos, com toda uma
conformação física masculina consolidada, para aí sugerir uma intervenção
cirúrgica médica? Porque não é só a questão da cirurgia, mas também da
hormonioterapia, da feminilização facial, de todo um pacote sobre o qual não se
fala. Fala-se da cirurgia, vagina, e parece que a questão é só essa. Não, é
todo um pacote, e isso com uma pessoa com os caracteres masculinos já desenvolvidos,
a qualidade dessa transformação não será a mesma, a proximidade com a aparência
do gênero que essa pessoa deseja vai ficar muito distante.
Então, se realmente isso foi diagnosticado como um caso de
uma mulher estar no biológico masculino, mas ser uma mulher, ou estar no biológico
masculino e ser um homem, por que não a intervenção antes de a pessoa ter todos
aqueles problemas pela modificação?
Eu sei que isso aqui seria visto como o cúmulo do absurdo, mas
o que se está pensando realmente é na qualidade de vida da criança
inicialmente, porque não se está pensando na moral do pai, na moral da
sociedade que não pode ser tocada. Em proteção a essa falsa moral, crianças e
mais crianças, pessoas e mais pessoas vão vivendo vidas infelizes, vão tendo suas
infâncias suprimidas e roubadas porque não podem pensar como as outras
crianças, pensar em amenidades, em
besteira, porque têm de ficar tentando resolver
seu conflito interno e a ele responder. Hoje, é muito simples para mim.
Eu entendo que o problema não é comigo, o problema é dos outros e a doença está
na cabeça dos outros. É muito simples, mas veja como isso é pesado, como isso é
cruel para uma criança de seis, sete anos que reza toda noite, como eu rezava
para que no dia seguinte eu acordasse normal, porque se todo mundo gostava de
menina, todo mundo gostava de bola, só eu não, qual era o problema? Era eu, e
isso para uma criança é muito cruel.
Até quando a sua travestilidade aflora e você liga o
“dane-se”. Você vai embora e quer ver gente, isso para mim é vital como
respirar. Eu sei que eu vou pagar todos esses preços, eu sei que vou assinar
esse contrato de abrir mão de todos os meus sonhos e direitos, mas não dá para
viver sem ser assim.
Então, essa emergência, esse entendimento de que essas
pessoas têm um gênero definido, têm um gênero próprio, que não é um modismo,
que não é festa Por exemplo quando eu falo que não me comparem a uma “Drag
Queen”, mas falam “Mas você é desfeminina”. Não me compare porque daí vira uma
manifestação artística e eu não sou uma manifestação artística, não transito em
gêneros. Está certo, quando eu vou para casa eu tiro a maquiagem, porque tem
muito barro aqui para tirar, mas não diferente da Ângela Bismark. Eu desmonto o
meu personagem feminino e fico numa “vibe” mais simples dentro do meu outro
personagem feminino, que é a dona de casa, a esposa, e já não é a figura
pública. É um desmontar, um transitar entre gêneros. Obviamente, eu digo que
travesti não é homem e travesti não é mulher. Travesti é travesti. Travesti é
uma identidade única, formulada dentro de uma criação masculina, somada, em
determinado momento, a uma criação feminina. Algumas coisas são particulares aos travestis,
a nossa facilidade em pôr o nosso desejo sexual em prática, nós sermos aquelas
mulheres que caçam, que buscam. Nós temos essa nossa liberdade sexual, essa nossa
permissividade que é peculiar. Isso é o encontro das águas do masculino com o
feminino que cria uma identidade única. Quando vou pôr em prática a minha
sexualidade, a minha vivência feminina, já existe toda uma estrutura
psicológica formulada no masculino sobre o que eu posso, o que eu não posso,
sobre o que eu me permito e o que eu não me permito, e isso cria uma identidade
única. A partir desse entendimento de identidade única, os formandos, os pais
têm de ser orientados para que conheçam seus filhos, os respeitem e entendam e
se entendam, achando o melhor caminho dentro desse fenômeno. Não você tratar,
como eu vi uma vez num programa, o programa Márcia, que tinha um psicólogo
cuidando de alguns casos de homossexualidade. , Acho super interessante você
ver esses programas porque é a possibilidade de ver como o povão que não está
nem aí, que se presta, que se posiciona e o que pensa, é um grande termômetro.
E havia o psicólogo, um homossexual e uma travesti. Para a mãe do homossexual,
o psicólogo falava que ela tinha que
entender, que ele trabalhava, que ele era um cara normal; para a família da
travesti, ele simplesmente disse: “Se você fosse homossexual, disso você não
teria culpa, mas ser travesti... Olha a que você está expondo a sua mãe”.
Então, há dois pesos e duas medidas totalmente diferentes.
Se existe o entendimento de uma pessoa não ser homofóbica, não quer dizer que a
pessoa não seja transfóbica, porque há muita gente que adora o homossexual,
principalmente o gay de estimação. “Ah, eu tenho um amigo gay. Ele vai sempre
lá em casa. Só não pode levar namorado, se tiver uma festa ele não pode beijar
e tudo, mas eu adoro ele, ele é gente finíssima. É, eu me dou com gays, não
discrimino não, eu o cumprimento na padaria, sou super legal”. Existe esse gay
de estimação, ou até outro tipo de gay
de quem eu gosto também: “Ah, meu amigo é gay, o William é gay, mas ele nem
parece, eu gosto assim, bem discreto. Ele e o casinho dele: você pensa que é
sobrinho, ninguém nem percebe”.
Agora uma travesti não, nem com esse falso posicionamento
ela vai ser aceita. Hoje em dia, é muito cruel, não ver você, não ver uma mulher
adequada como Beth. Vocês adentram, então, pela porta do preconceito social,
que é o que há de maior. Ah! a travesti é outra mulher adequada, mas a outra é
psicóloga, outra é gestora no Rio,
Então, enquadra-se melhor ela do
que uma pessoa que não seja transexual, também é feinha, não seja arrumada como
a gente, não seja a nossa altura. É por isso que nós entramos. É muito triste o
que a gente discute na reunião. E falam: ah mas você tem um destaque, você
frequenta alguns lugares tristes. Triste é eu ter de vir aqui, o meu destaque, a
minha posição social é para dizer que eu tenho menos direito, que socialmente
eu sou menos, que socialmente as pessoas não me aceitam, ter o tempo todo de
solicitar parcerias para garantir o que todo mundo tem. Que coisa triste! Eu
preferia realmente gastar meu tempo fazendo fofoca, ver um programa da Sonia Abrão
ou, então, bater papo no MSN, coisas que eu gostaria de fazer, mas não me sobra
tempo. Então, o que a gente veio buscar com essa fala foi simplesmente
aproximar as travestis transexuais de todos vocês, como apenas uma vertente do gênero feminino, gênero
feminino em que a protagonista é a mulher, mas travestis e transexuais vêm
provar que gênero é desassociado de genitália."